Ameaças e ataques marcam a relação do executivo federal com a mídia
O ano de 2019 foi o primeiro do século em que o número de países não democráticos superou o número de países democráticos ao redor do mundo. Segundo o instituto internacional V-DEM, 54% da população mundial vivem sob regimes autocráticos e outros 35% vivem em regimes com tendências autocratizantes. Nesse cenário, o Brasil vem chamando a atenção com uma das maiores quedas nos índices de democracia dos últimos anos.
Tendência decisiva rumo à autocratização é a restrição da liberdade de imprensa. No país, diversos são os casos de ataques à imprensa e, se é verdade que a violência a repórteres, jornalistas e à mídia no geral é anterior, por outro lado a eleição presidencial de 2018 selou nova era de ódio e ataques a jornalistas. Dentre 180 países, o Brasil aparece na 107ª posição do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa da organização Repórteres sem Fronteiras (RSF) de 2020 e está em espiral descendente nos últimos anos.
Desde de sua posse presidencial, Bolsonaro impõe restrições ao trabalho de jornalistas e marca sua postura de combate à imprensa, que se agrava por meio de insultos aos profissionais e veículos de mídia — recorrentemente referidos pelo presidente como “lixo” —, pela propagação de notícias falsas e adoção de medidas formais que prejudicam a mídia. Em 2019, a Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ) registrou 116 ataques de Bolsonaro à imprensa e 245 ocorrências só no primeiro semestre de 2020. Durante a emergência da crise sanitária, esse cenário se agravou com intimidações a jornalistas na cobertura do Palácio do Planalto, descrédito a informações sobre a pandemia e até incentivo à vigilância em hospitais – dada a suposta desconfiança do presidente em relação aos dados sobre infecção e tratamento.
Confira a seguir o conjunto de atos e comportamentos de atores estatais entre 2019 e 2020 que, ao atingirem a imprensa, trouxeram riscos à democracia brasileira.
Durante a cerimônia de posse do presidente Jair Bolsonaro, a circulação de jornalistas no local é restringida, sob a justificativa de ser uma ‘posse diferenciada’ [1]. O evento é marcado por hostilidades a jornalistas, que recebem orientação de chegar às 7h no local, mesmo com o horário da cerimônia marcado para às 15h, são impedidos de ter livre circulação, ficam com acesso limitado a água e banheiros e recebem ameaças constantes em relação ao desrespeito às regras determinadas [2]. Na posse dos presidentes anteriores, os repórteres se misturavam com a equipe recém-empossada e a do governo anterior, com acesso livre ao local [3]. As restrições impostas geram indignação por parte de entidade de representação nacional dos jornalistas [4], associações vinculadas à imprensa [5] e do jornalismo [6], bem como da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), manifestando repúdio ao tratamento desrespeitoso aos profissionais. Ao longo de seu governo, Bolsonaro promove uma série de ataques à imprensa, como editar medida provisória dispensando o poder público de publicar atos administrativos em jornais de grande circulação [veja aqui], excluir a Folha de São Paulo do edital de licitação do governo federal [veja aqui], e publicar vídeo em que ataca emissora e ameaça liberdade de imprensa [veja aqui]. No ano seguinte, o presidente afirma que jornalistas são ‘espécie em extinção’ [veja aqui] e acusa a imprensa de faltar com a verdade, ocasionando a suspensão da cobertura jornalística do Palácio da Alvorada em razão das hostilidades [veja aqui].
Leia a análise sobre a relação conflituosa de Bolsonaro com a imprensa, que começou até antes de sua posse.
Em reação à reportagem do jornal Metrópoles, cuja manchete afirma que o presidente Jair Bolsonaro teria bloqueado Fernando Haddad (PT) nas redes sociais após discussão entre os dois, o presidente escreve no Twitter que: ‘Não há nenhum limite de alguns setores da mídia para inventarem mentiras 24h por dia sem a menor preocupação com a informação’ [1]. O jornal atacado responde que a apuração foi feita com base no sumiço de comentário de Haddad em publicação do presidente e nas políticas do Twitter [2]. Porém, a reportagem assume que a informação foi divulgada com base em indícios e que não havia como comprová-la e que, ao contatar Fernando Haddad, o político não pôde confirmar o que ocorreu, mas suspeita que tenha sido bloqueado em algum momento [3]. Os ataques de Bolsonaro à imprensa são frequentes, até março, a cada três dias, a imprensa é alvo de postagens críticas e irônicas do presidente em sua conta do Twitter [4]. Em outros momentos, Bolsonaro afirma que jornalistas são ‘espécie em extinção’ [veja aqui], responde agressivamente [veja aqui] a repórteres [veja aqui], levanta suspeita de conspiração midiática contra seu governo [veja aqui] e defende boicote a veículos de imprensa [veja aqui]. Além disso, o presidente também compartilha notícia falsa da jornalista Constança Rezende [veja aqui] e insulta com insinuação sexual a repórter Patrícia Campos Mello [veja aqui]. Ao longo de 2019, Bolsonaro profere 116 ataques à imprensa [veja aqui].
Leia as análises sobre a violência contra jornalistas em 2019 e quais os limites que Bolsonaro ultrapassa quando briga com a imprensa
O presidente compartilha notícia falsa [1] do portal Terça Livre, que afirma que a jornalista do Estadão Constança Rezende teria dado entrevista a jornal fracês e admitido que gostaria de ‘arruinar Flávio Bolsonaro e o governo’ [2] com a cobertura jornalística das movimentações suspeitas de Fabrício Queiroz, acusado de esquema de corrupção com o filho do presidente [veja aqui]. O próprio jornal Estadão desmente em seguida o presidente [3], bem como o jornal francês que teria entrevistado a jornalista [4]. Após o ocorrido, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se manifestam, defendendo que o presidente teria descompromisso com a veracidade dos fatos e tentaria intimidar a mídia [5]. Partidos da oposição igualmente criticam o episódio [6]. Outras entidades, como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ) também publicam notas de repúdio [7]. Após a repercussão, porém, o presidente não se retrata, apenas reclama das muitas manifestações de solidariedade à jornalista e ironiza: ‘se não ler as notícias é desinformado… se as ler ficará mal informado’ [8]. episódio marca série de conflitos do governo com a imprensa [veja aqui] e jornalistas [veja aqui].
Leia as análises sobre o caso em questão, seu enquadramento em cenário de ataques à imprensa e de investigação de Flávio Bolsonaro, a relação da mídia com a democracia, os ataques do governo aos jornalistas
O presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) assina Portaria [1] que unifica a TV Brasil (empresa estatal) e a NBR (emissora do governo federal) [2]. O gerente executivo da EBC afirma que a fusão pretende servir de ‘fonte com credibilidade para os atos do governo’ [3]. Especialistas temem que a unificação misture conteúdos de interesse do governo atual e aquilo que é de interesse público – já que a função da TV Brasil é veicular informações de natureza não estatal [4]. Em reação à medida, uma proposta de sustar os efeitos da portaria é apresentada na Câmara dos Deputados [5] e, em audiência pública na Comissão de Cultura da Câmara, entidades da defesa do direito à comunicação afirmam que a unificação é inconstitucional e ilegal [6]. A programação da nova emissora é denunciada por censura, ao proibir o uso de termos como ‘golpe’ e ‘ditadura’ em reportagens sobre os 55 anos da ditadura militar [7]. Em maio, Projeto de Decreto Legislativo [8] suspende a portaria e está na Câmara dos Deputados [9]. Em julho, o Ministério Público Federal do Rio protocola ação visando a anular a portaria ao constatar inclusão indevida de programações tipicamente estatais [10]. Essa não é a única medida do governo que colide com interesses da sociedade civil. Em janeiro, a NBR utilizou o slogan de campanha de Bolsonaro, prática que é vedada pela Constituição [veja aqui].
Leia a análise sobre os problemas decorrentes da fusão das emissoras públicas.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) – órgão de inteligência financeira destinado à investigação de movimentações suspeitas e reestruturado no governo Bolsonaro – e o ministro da Economia, Paulo Guedes, não esclarecem ao Tribunal de Contas da União (TCU) se o órgão estaria investigando o jornalista Glenn Greenwald [1]. A justificativa dada pelo órgão é que este não poderia se pronunciar sobre casos concretos; já Guedes afirma que não conheceria o caso. As respostas são consideradas evasivas e não deixam claro se há ou não investigação em curso [2]. Greenwald é fundador do The Intercept, site que publicou conversas entre Sergio Moro, ministro da Justiça, e a força tarefa da operação Lava-jato; as suspeitas da investição são levantadas após Moro não esclarecer se o procedimento existiria ou não [3]. O Ministério Público junto ao TCU pede que toda investigação sobre Greenwald seja suspensa; de acordo com o tribunal, a Polícia Federal teria pedido uma investigação que poderia ser uma ameaça à liberdade de imprensa [4]. O partido Rede, da oposição ao governo federal, pede o Supremo Tribunal Federal (STF) que as investigações sejam interrompidas [5], pedido que é atendido pelo magistrado Gilmar Mendes [6]. Entidades da sociedade civil, como a OAB pedem que Coaf explique as investigações contra Glenn [7]. Em 23/07, a PF afirma ao STF que Greenwald não é investigado [8]. Em 11/09, é enviado ao Ministério Público do Rio de Janeiro investigação do Coaf sobre David Miranda, marido do jornalista e deputado federal pelo PSOL; Greenwald vê isso como movimento de retaliação do governo federal [9]. Greenwald já foi chamado de ‘malandro’ por Bolsonaro [veja aqui] e, posteriormente, foi denunciado pelo Ministério Público Federal sem investigação [veja aqui].
Leia análise sobre as investigações do Coaf, as investidas de Sergio Moro contra quem vazou suas conversas e reportagem em que Glenn se pronuncia sobre o caso
Ao ser questionado sobre portaria que permite deportação sumária de estrangeiros [veja aqui], o presidente da República Jair Bolsonaro afirma que o jornalista norte-americano Glenn Greenwald poderia ‘pegar um cana’ no Brasil [1]. Greenwald é um dos fundadores do The Intercept Brasil e um dos responsáveis pela divulgação de mensagens vazadas entre Sergio Moro (quando exercia magistratura) e procuradores da operação Lava Jato [2]. Além disso, ainda falando sobre a portaria, o presidente também afirma que Greenwald e seu marido David Miranda (parlamentar pelo partido da oposição ao governo federal PSOL) seriam ‘malandros’, em referência a terem se casado e adotado crianças no Brasil, o que impediria a deportação de Glenn [3]. Organizações da sociedade civil repudiam a fala do presidente, vendo nela um risco à liberdade de expressão [4]; também se posicionam contra a perseguição de jornalistas após a publicação da série de reportagens [5]. Além disso, o advogado Edson Lanza, autoridade máxima da Organização dos Estados Americanos em liberdade de expressão, vê com ‘absoluta preocupação’ as declarações do presidente e afirma que poderiam gerar discurso de ódio [6]. Greenwald aciona o Supremo Tribunal Federal para que Bolsonaro explique suas declarações [7], o que o presidente faz após um mês depois de ser notificado, alegando que não teria cometido nenhum crime [8]. Vale lembrar que Jair Bolsonaro já se envolveu em questões de liberdade de imprensa com as jornalistas Constança Rezende [veja aqui], Patrícia Campos Mello [veja aqui] e Vera Magalhães [veja aqui] e com os jornalistas como um todo [veja aqui].
Leia entrevista com Greenwald e análises sobre as reportagens e a liberdade de imprensa, medidas tomadas por Sergio Moro e qual a limitação das agressões de Bolsonaro à imprensa.
O presidente Jair Bolsonaro edita medida provisória (MP 892) [1] que altera legislação sobre sociedades empresariais para dispensar empresas de publicarem balanço financeiro em jornais impressos de grande circulação [2]. Ao anunciar a medida, o presidente afirma que retribuiu ataques da mídia para garantir que empresários tenham ‘custo zero’ com a publicação de balancetes somente no site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Diário Oficial (DO) [3]. A medida é recebida com críticas por associações jornalísticas [4] que apontam para ‘asfixia’ econômica dos jornais e riscos para a transparência [5]; bem como pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) [6]. Além disso, a MP atravessa lei de 2019 [7], sancionada por Bolsonaro em abril, que já previa uma redução dos demonstrativos financeiros a serem publicados por empresas nos jornais impressos e estabelecia um prazo de dois anos de transição para que veículos de imprensa pudessem buscar outras fontes de rendimentos [8]. Em setembro, Bolsonaro edita nova MP que dispensa a administração pública da obrigação de publicar em jornais de grande circulação editais de licitação [veja aqui]. Em novembro a medida é rejeitada pela comissão mista no Senado [9] e em dezembro a MP perde validade sem ter sido votada no Congresso Nacional [10]. As medidas são seguidas por outros cortes de gastos com a imprensa, como a exclusão da ‘Folha de São Paulo’ de edital do governo [veja aqui] e cancelamento de assinatura de todos os jornais e revistas impressos para o Palácio do Planalto [veja aqui].
Leia análise sobre os limites da atuação presidencial na regulação da publicidade de atos oficiais, e ouça podcast sobre a relação do presidente com a imprensa.
Durante a inauguração de usina em Sobradinho (BA), ao ser questionado sobre a indicação de seu filho, Eduardo Bolsonaro, para a embaixada nos EUA [veja aqui], o presidente Jair Bolsonaro se irrita com os jornalistas e declara que ‘a campanha acabou para a imprensa. Eu ganhei. A imprensa tem que entender que eu, Johnny Bravo, Jair Bolsonaro, ganhou, porra!’ [1]. O presidente complementa afirmando que o trabalho da imprensa é excelente, ‘desde que bem feito’ [2]. O presidente faz referência ao personagem Johnny Bravo da Cartoon Network, que representava um homem forte e que pretendia ser um ‘galã’, porém era narcisista, dotado de pouca inteligência, fugia do trabalho a todo custo e tratava mal as mulheres [3]. Os ataques de Bolsonaro à imprensa são frequentes, em outras oportunidades, o presidente responde ironicamente [veja aqui] e agressivamente [veja aqui] a repórteres, afirma que jornalistas são ‘espécie em extinção’ [veja aqui], levanta suspeita de conspiração midiática contra seu governo [veja aqui] e anuncia o cancelamento do jornal Folha de São Paulo [veja aqui]. O presidente também faz ataques pessoais a jornalistas, como os casos de Constança Rezende [veja aqui], Patrícia Campos Mello [veja aqui] e Vera Magalhães [veja aqui]. De acordo com entidade de jornalistas, ao longo de 2019, Bolsonaro fez 116 ataques à imprensa [veja aqui].
Leia as análises sobre os ataques de Bolsonaro à imprensa e quais os limites que o Presidente ultrapassa quando a confronta
O presidente Jair Bolsonaro, durante encontro com representantes da Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão (ACAERT), no Palácio do Planalto, afirma que ‘a imprensa está cometendo um suicídio’ [1] e está acabando porque ‘não se acha verdade’ nela [2]. Nas declarações, o presidente ataca o jornal Valor Econômico, afirmando que ele vai fechar [3], em referência à Medida Provisória editada no início do mês que suspendeu a obrigação de grandes empresas de publicarem balanço financeiro em jornais impressos de grande circulação, vista como ‘asfixia’ econômica dos jornais e redutora da transparência [veja aqui]. Na ocasião, ele também afirma haver uma briga com a grande imprensa pela suposta deturpação de suas falas [4]. As declarações são repudiadas por associação de jornais, que diz que o presidente ignora a relevância da atividade jornalística [5]. O episódio é seguido por mais embates com a imprensa, como a exclusão da ‘Folha de São Paulo’ de edital do governo [veja aqui] e cancelamento de assinatura de todos os jornais impressos para o Palácio do Planalto [veja aqui]. No ano seguinte, o presidente afirma que jornalistas são ‘espécie em extinção’ [veja aqui].
Leia a análise sobre os limites que Bolsonaro ultrapassa ao atacar a imprensa.
O Presidente Jair Bolsonaro edita Medida Provisória (MP) [1] que altera a legislação para dispensar o governo Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios da obrigação de publicar em jornais de grande circulação editais de licitação, tomadas de preço, concursos e leilões [2]. A MP institui que as publicações referentes a esses atos administrativos podem ser efetuadas apenas nos sites dos órgãos da Administração Pública [3]. A Rede Sustentabilidade ajuizou ação no STF [4] alegando que a medida visa retaliar a imprensa e cercear a liberdade de expressão e a democracia, pois a renda dos jornais depende dos recursos provenientes dessas publicações [5]. Em medida liminar, o STF suspende a eficácia da MP [6] e justifica que o ato pode prejudicar o direito à informação, à transparência e à publicidade nos atos licitatórios [7]. A MP caducou sem ser votada pelo Congresso [8]. Poucos meses antes, o Presidente editou outra MP [9] que dispensa determinadas empresas de publicarem seus balanços em jornais de grande circulação [veja aqui]. Na oportunidade, Bolsonaro fez diversos ataques à imprensa e afirmou que esperava que ‘o Valor Econômico sobreviva à medida provisória de ontem’ [10]. Para a mídia, ambas as MPs visam prejudicar os jornais [11]. A edição dessas medidas compõe o quadro de crescente acirramento entre Bolsonaro e a imprensa, composto, por exemplo, por agressões verbais e ameaças [veja aqui], exclusão da ‘Folha de S. Paulo’ de licitação [veja aqui] e cancelamento das assinaturas de jornais e revistas impressos ao Planalto [veja aqui].
Leia as análises sobre como Bolsonaro reage às informações veiculadas pela mídia, os ataques do Presidente aos veículos de comunicação, os limites da atuação presidencial contra a imprensa no quadro de ataques e ouça sobre a relação entre imprensa e democracia.