O governo federal, por meio de decreto [1], institui o Cadastro Base do Cidadão, novo sistema que pretende reunir informações cadastrais dos cidadãos e vinculá-las unicamente ao Cadastro de Pessoa Física (CPF), para que possam ser compartilhadas entre diferentes esferas do governo. O objetivo é criar um meio unificado para a prestação de serviços públicos, aperfeiçoamento na implementação e monitoramento de políticas públicas, entre outros [2]. O sistema prevê não apenas o compartilhamento de dados básicos como nome civil ou social, data de nascimento e vínculos de emprego, mas também de dados biométricos para reconhecimento: impressões digitais, características da face, dos olhos e da voz, bem como o modo de andar [3]. Especialistas veem a edição do decreto com preocupação pela ausência de transparência nas finalidades do compartilhamento dos dados pessoais [4]. Além de representarem mecanismo que abre margem para abusos [5] e que retira do cidadão o poder sobre as suas informações pessoais [6], as medidas vão na contramão da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) [7]. Vale notar que, em 2020, o governo baixa outro decreto [veja aqui] e edita as Medidas Provisórias (MPs) 959 [veja aqui] e 954 [veja aqui] que afetam a proteção de dados pessoais dos brasileiros.
Ouça o podcast que discute a eficiência da nova base de dados pessoais dos brasileiros e leia as análises sobre o que muda com o novo decreto e os riscos do Cadastro Base do Cidadão.
O ministro da Justiça, Sergio Moro, edita as Portarias 790 [1] e 793 [2] para disciplinar o repasse de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para os Estados e estabelecer quais projetos e ações poderão ser financiados na área de segurança pública [3]. As Portarias tratam da valorização do profissional de segurança pública e do enfrentamento à criminalidade violenta [4], este último com previsão de utilização do fundo para a implantação de sistemas de reconhecimento facial, uso de inteligência artificial, e outros mecanismos de vigilância [5]. Apesar de regularem o incremento de recursos para, por exemplo, a capacitação de profissionais na área [6], também podem ser prejudiciais à privacidade dos cidadãos e seus dados pessoais. Quatro dias depois, o governo de São Paulo assina contratos visando implementar sistemas de vigilância eletrônica, mas especialistas alertam para os efeitos desse monitoramento em outros países, ao reforçar estereótipos e promover exclusões [7]. De acordo com a polícia do Detroit (EUA), o reconhecimento facial não é confiável [8] e, na contramão da implementação pelo Brasil – como a utilização do monitoramento facial no carnaval de São Paulo, em 2020 [9], cidades norte-americanas proíbem o uso dessa tecnologia pela polícia [10]. Vale notar que, no ano de 2019, a utilização do FNSP bate recorde histórico para ações nas áreas de segurança pública e de prevenção à violência [11], indicando uma gestão pautada pelo incremento do vigilantismo.
Leia as análises sobre a tecnologia de reconhecimento facial, um estudo sobre problemas decorrentes de seu uso na área de segurança pública, bem como a banalização dessa tecnologia controversa e ouça o podcast sobre as tecnopolíticas da vigilância.
O ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) determina que o Banco Central (BC) forneça em 5 dias cópias de todos os relatórios de inteligência financeira (RIFs) – informações sigilosas a respeito de movimentações financeiras atípicas – elaborados entre 2016 e 2019 pelo então Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), renomeado e reestruturado em agosto sob o nome de Unidade de Investigação Financeira (UIF) [veja aqui] [1]. A decisão do ministro ocorre em processo sigiloso que discute a legalidade de investigações instauradas com informações obtidas pelo Coaf sem prévia autorização judicial [2]; e é revelada por reportagem da Folha de São Paulo em 14/11, a qual aponta que a determinação inclui a disponibilização de 19.441 relatórios pelo BC, garantindo o acesso a dados de 412,5 mil pessoas físicas e 186,2 mil pessoas jurídicas [3]. A decisão é fundamentada pela necessidade de compreensão das etapas de elaboração dos RIFs, mas o ministro não se pronuncia publicamente sobre o caso [4]. No dia seguinte à reportagem, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, solicita a revogação da decisão por considerar a ordem de Toffoli uma ‘medida desproporcional que põe em risco a integridade do sistema de inteligência financeira, podendo afetar o livre exercício de direitos fundamentais’, mas o pedido é indeferido [5]. O entendimento de Aras é corroborado pela Unidade de Investigação Financeira, que ressalta riscos para prosseguimento de investigações [6]. Em 18/11, Toffoli decide ‘tornar sem efeito a decisão’ e afirma que, a despeito das informações terem sido prestadas pela UIF, ‘esta corte não realizou o cadastro necessário e jamais acessou os relatórios de inteligência’ [7]. Vale notar outros episódios de interferência no órgão de inteligência são registradas, como mudança na sua subordinação ministerial [veja aqui], reestruturação e demissão de seu presidente [veja aqui].
Leia análise sobre riscos do acesso indiscriminado de dados sigilosos pelo presidente do STF e entenda o que são os relatórios de inteligência.
Presidente Jair Bolsonaro edita decreto [1] permitindo que governo compartilhe dados pessoais sigilosos com outros órgãos públicos sem a necessidade de autorização expressa dos cidadãos. A medida preenche lacuna de outro decreto [2], responsável pela criação do Cadastro Base do Cidadão, plataforma governamental capaz de armazenar, entre outras coisas, dados biométricos dos cidadãos [veja aqui]. A motivação por trás do novo decreto não está clara, mas pode dizer respeito a eventual necessidade de compartilhamento de dados para identificação de casos suspeitos de covid-19 [3]. Essa não é a primeira ação governamental que tem por objetivo a flexibilização da proteção de dados pessoais durante a pandemia. Em outra oportunidade, Medida Provisória determinou que dados pessoais sejam compartilhados por empresas de telecomunicação para uso do IBGE no combate da pandemia [veja aqui].
Leia a análise sobre os impactos do Cadastro Base do Cidadão na proteção de dados pessoais.
Medida Provisória 954 [1] determina compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações com o IBGE para a produção estatística no período de emergência de saúde pública. Com a medida, as prestadoras de telefonia fixa e móvel devem compartilhar com o instituto os nomes, os números de telefone e os endereços de seus consumidores durante a situação de emergência para a coleta de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua [2]. As reações à medida foram várias. A Coalizão Direitos na Rede publica Nota [3], ressaltando que o texto da MP deveria ser aprimorado, sob pena de violação da privacidade dos cidadãos. Além disso quatro partidos políticos (PSDB [4], PSOL [5], PSB [6], PCdoB [7]) e o Conselho Federal da OAB [8] ajuízam ações no STF [9]. Em 20/04, a Ministra Relatora desses processos no Tribunal, Rosa Weber, suspende de maneira não definitiva a eficácia da MP [10], frisando que ela fere a privacidade dos cidadãos e não é clara quanto às finalidades do compartilhamento de dados [11]. Apesar da pendência do processo no STF, o IBGE chega a enviar formulários a operadoras de telefonia pedindo dados ‘com urgência’ [12]. Em 07/05, o Plenário do STF referenda decisão de Weber e mantém suspensa a eficácia da MP [13].
Leia as análises sobre a proteção de dados durante a pandemia no Brasil, recomendações para seu uso no país, a necessidade de marcos regulatórios sobre direitos digitais em sociedades democráticas e o atual panorama da vigilância em face dos diferentes regimes políticos.
Medida Provisória 959 [1] editada pelo presidente Bolsonaro, que também estabelece a operacionalização do pagamento do auxílio emergencial [veja aqui], posterga a aplicação da Lei de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A exposição de motivos aponta para uma possível incapacidade de parcela da sociedade em implantar a LGPD em razão dos impactos econômicos e sociais provocados pela crise pandêmica [2]. As principais disposições da lei deveriam entrar em vigor a partir de agosto de 2020, mas o governo ampliou o prazo para 3 de maio de 2021. Essa é a segunda vez que a vigência da lei é adiada [3]. O Ministério Público Federal se manifestou em nota contra o adiamento e defendeu que a LGPD poderia auxiliar o país no desenvolvimento de ações e na colaboração com atores estrangeiros durante a pandemia [4]. A medida também foi alvo de críticas de especialistas da área, que afirmaram que o novo adiamento gera incerteza jurídica e mantém problema da falta de órgão regulador [5]. Posteriormente, o Senado Federal aprova a antecipação da vigência da LGPD [6], retornando de maio de 2021 para agosto de 2020, por meio do PL 1.179/20 [7]. O projeto agora pende de aprovação na Câmara dos Deputados. Em 29/06, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, prorroga por mais 60 dias a vigência da MP 959 [8], e entidades relacionadas à comunicação social publicam carta apoiando a aprovação da medida provisória [9]. Em 26/08, o Senado rejeita parte da MP 959, que alterava a Lei nº 14.010/2020, de modo que a vigência da LGPD será iniciada após a sanção presidencial [10]. Em 18/06, a sanção presidencial é publicada no Diário Oficial da União e a LGPD entra em vigor [11]. Vale notar que a MP 959 não foi a única medida do governo, nos últimos meses, que afeta a proteção de dados pessoais [veja aqui].
Veja análise sobre os riscos do adiamento da LGPD durante a pandemia, a falta de necessidade da edição de MP para postergá-la e a escolha da medida em focar no auxílio emergencial e não propriamente na proteção de dados pessoais.
O Ministério Público do Rio Grande Norte produz um relatório sobre ‘policiais antifascistas’, sob a justificativa de suposta criação de grupo ‘paramilitar’ no estado [1]. O documento contém dados pessoais de 23 servidores da área de segurança pública, incluindo nomes, endereços residenciais, fotografias e publicações em redes sociais [2]. O órgão responsável pela sua confecção é o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), cujas atribuições contém o controle externo da atividade policial; segundo o órgão, o levantamento teria sido feito apenas com dados públicos, não ficando claro como teriam sido obtidos os endereços e informações pessoais [3]. No relatório consta, inclusive, que o apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria ‘apologia de autor de crimes’, além de fotos de policial com a ex-presidenta Dilma Rousseff, ambos do partido da oposição ao governo federal PT [4]. Vale lembrar outras medidas envolvendo posicionamento político de servidores, como dossiê de funcionários públicos feito pelo ministério da Justiça [veja aqui], emissão de comunicados de órgãos públicos sobre uso de redes socias e publicações sobre o governo [veja aqui], incluindo nota técnica da Controladoria-Geral da União [veja aqui].
Leia análise sobre como a elaboração do relatório relembra práticas executadas durante o período de ditadura militar.
No Alagoas, a Justiça determina por liminar o bloqueio de contas do Whatsapp que teriam feito disparos em massa de montagem em vídeo contra o deputado federal João Henrique Caldas (PSB-AL), assim como o fornecimento de informações pelo Facebook [1]. As contas teriam enviado videos contendo um ‘meme’ em que Caldas aparece carregando um caixão e dançando, além do top 5 ‘pessoas que mais lucraram com o coronavírus em Alagoas’ [2]. Segundo a decisão da 2ª Vara Cível de Maceió, a mensagem seria ‘notadamente ofensiva à honra e imagem do Autor’ [3] e se enquadraria na lei do Marco Civil da Internet que estabelece que o provedor poderá ser responsabilizado se não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo infringente após ordem judicial e que permite o fornecimento de registros de conexão ou de acesso pelos aplicativos [4]. Vale lembrar que, no Espírito Santo, um cidadão foi convocado a depor em uma CPI em que fake news também foram abordadas como crime contra a honra [veja aqui].
Leia a análise sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet, utilizado na decisão.
Medida Provisória 968 [1] autoriza prorrogação, até 18 de maio de 2021, de nove contratos de trabalho por tempo determinado celebrados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os contratos versam sobre o desenvolvimento do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas (Sinesp). A justificativa apresentada pelo governo para a prorrogação é que a saída dos funcionários temporários atrasaria a implementação do sistema, ainda em fase de consolidação [2]. O Sinesp pretende sistematizar informações estaduais relativas à segurança pública, como monitoramento de áreas com alto índice de criminalidade, boletins de ocorrência, dados de mandados de prisão, cadastro de desaparecidos, entre outros. Ainda, o governo alega que a pandemia fruto da covid-19 impede a realização de concurso público para provimento dessas vagas [3].
O Ministério Público de São Paulo (MP SP) abre inquérito civil para averiguar suposto ‘gabinete do ódio’ contra o deputado estadual Douglas Garcia (PSL) e Edson Salomão, seu chefe de gabinete e presidente do Instituto Conservador [1]. A investigação busca apurar se, durante o horário do expediente na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) e com uso de recursos públicos, houve manifestação de ódio contra figuras públicas, divulgação de postagens do Instituto Conservador e incentivo a coleta de assinaturas para a formação do partido Aliança pelo Brasil (do presidente da República Jair Bolsonaro) [2]. Em 01/06, Garcia pede que enviem dados de pessoas que se autodenominam ‘antifascistas’ para seu endereço de e-mail e no dia seguinte grava vídeo com suposto dossiê [3], em contexto de protestos desses grupos contra o governo [veja aqui]. Com o vazamento de uma lista com os dados de cerca de 900 pessoas (cidadão comuns classificados como antifascistas) muitos atribuem ao deputado sua confecção e vazamento dos dados [4]. O MP SP irá investigar se houve uso da administração pública para a elaboração do dossiê [5] e deputadas do PSOL, partido da oposição ao PSL, pedem a cassação de Garcia [6]. O deputado nega que tenha elaborado o dossiê e afirmar ter entregue as informações à polícia [7]. Posteriormente, liga-se servidores do gabinete de Garcia à ataques de figuras como a parlamentar Joice Hasselman, vista como opositora à setores do governo Bolsonaro, além de instituições como o Supremo Tribunal Federal [8]. Em agosto, Garcia é condenado pela justiça paulista a pagar indenização de R$ 20 mil por conta do dossiê [9], e posteriormente ele afirma que Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e deputado federal, teria entregado cópia do dossiê para a Embaixada dos EUA [10]. Na sequência, Eduardo se torna réu de ação no STF, sob justificativa de que a entrega de cópia do dossiê viola a Lei de Segurança Nacional [11]. Em julho, ação sigilosa do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) monitora servidores antifascistas e repassa informações a outros órgãos do governo [veja aqui], e o STF, acionado sobre a ação, proíbe a elaboração de dossiês pelo MJSP [12].
Leia análises sobre o que é o antifascismo, o papel de Garcia no inquérito de fake news e comunicado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Atos que trazem como justificativa o enfrentamento da pandemia de covid-19 ou outra emergência. Sob o regime constitucional democrático, atos de emergência devem respeitar a Constituição e proteger os direitos à vida e à saúde. Mesmo assim, por criarem restrições excepcionais ligadas à crise sanitária, requerem controle constante sobre sua necessidade, proporcionalidade e limitação temporal. A longo prazo, demandam atenção para não se transformarem em um 'novo normal' antidemocrático fora do momento de emergência.
Atos que empregam ferramentas da constante reinvenção autoritária. Manifestações autoritárias que convivem com o regime democrático e afetam a democracia como sistema de escolha de representantes legítimos, como dinâmica institucional que protege direitos e garante o pluralismo.