No mês de setembro, a Caixa Cultural – programa de centros culturais vinculados à empresa pública Caixa [1] – promove o cancelamento de eventos e espetáculos com temática LGBT e democracia [2]. Dentre eles, estão três eventos que ocorreriam no Rio de Janeiro e um em Brasília. No Rio, ocorreriam mostra da cineasta Dorothy Arzner que discutiria temas feministas e homossexualidade [3]; o ciclo de palestras ‘Aventuras do Pensamento’ sobre democracia, história, ciência e ambiente [4], cuja justificativa para o cancelamento seria a mudança de títulos das palestras sem aviso prévio [5] [6]; e a peça ‘Lembro Todo Dia de Você’ sobre as lembranças de um personagem homossexual e soropositivo, com cenas de beijos entre homens [7] – que acaba ocorrendo em novembro [8]. A peça ‘Gritos’, em Brasília, que aborda questões de identidade de gênero e tem entre as personagens uma travesti, deixou de se apresentar após questionamentos da Caixa [9]. Vale notar que, no mesmo mês, a Caixa cria regras para avaliar os projetos culturais e inclui a verificação de posicionamento político de artistas [veja aqui] e cancela uma peça infantil com temática de repressão e ditadura [veja aqui]. Além disso, outros cancelamentos ocorrem, como a apresentação de cantora transexual em Parada LGBT , uma peça de teatro com cena de nudez [veja aqui] e o show de BNegão [veja aqui].
Leia as análises sobre a censura que corrói a arte no Brasil, as estratégias do governo Bolsonaro nas produções culturais e as medidas que podem ser tomadas em caso de cancelamento.
Diplomacia brasileira solicita que organização do 8º Festival de Cinema do Brasil, ocorrido em Montevidéu, não exiba documentário ‘Chico: Artista Brasileiro’ sobre a vida e carreira de Chico Buarque de Hollanda, cantor, compositor e afeto declarado do ex-presidente Lula [1]. Após o caso, considerado como censura pela produtora do filme, deputados protocolam requerimento na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional exigindo explicações por parte do ministro das relações exteriores [2]. O Itamaraty afirma que sua atuação se limitaria a indicar sugestões de produções a serem rodadas no festival, e que a seleção dos filmes seria de responsabilidade dos produtores do evento. Depois da repercussão, o documentário é convidado para encerrar a programação do festival [3]. Entre outras posições da diplomacia brasileira que geraram grande reação, estiveram também episódios quando o Itamaraty teria oficialmente orientado diplomatas de que a compreensão sobre gênero seria apenas baseada na noção de sexo biológico [veja aqui] e quando teria censurado informações sobre a política de gênero que embasa a posição do governo na ONU até 2024 [veja aqui]. Em fevereiro do ano seguinte, a agência de comunicação do governo federal critica nas redes sociais a cineasta Petra Costa e seu documentário indicado ao Oscar sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff [veja aqui].
Leia análise que explica a posição do atual ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, na história da diplomacia brasileira, e lista de embaixadas brasileiras que foram fechadas pelo governo Bolsonaro.
Congresso Nacional aprova a Lei nº 13.870/19 [1], responsável por alterar a Lei nº 10.826/03 [2], para determinar que, em área rural, para fins de posse de arma de fogo, considera-se residência ou domicílio toda a extensão do respectivo imóvel. Nesse sentido, a nova lei garante a residentes em áreas rurais a posse de arma não apenas na sede da propriedade, mas em toda a extensão do terreno, ou seja, as armas de fogo não precisarão estar armazenadas apenas no imóvel principal de uma fazenda, mas também em outros pontos da propriedade. Em reação a nova ampliação armamentista, assessora especial do Instituto Igarapé afirma que a lei sancionada é um retrocesso por, na prática, transformar a posse em porte de arma nas áreas rurais [3]. A lei em questão se alinha com medidas como a autorização de operações de Garantia da Lei e da ordem (GLO) para a reintegração de posse em áreas rurais [veja aqui] e a exclusão de ilicitude para agentes em operações de GLO [veja aqui]. No dia seguinte, o presidente sanciona a lei [veja aqui].
Leia análise produzida por entidades da sociedade civil apontando que ampliação do posse de armas pode gerar aumento da violência no país.
O presidente Jair Bolsonaro sanciona sem vetos a Lei 13.870/2019 [1], aprovada no dia anterior pelo Congresso Nacional [veja aqui], a qual altera o Estatuto do Desarmamento [2] e amplia o conceito de residência nas áreas rurais para a extensão de todo o imóvel [3]. Assim, se antes o uso de armas era restrito a sede da fazenda, com a nova lei o proprietário e o gerente da propriedade estão autorizados a andar armados pela área total do imóvel [4]. De autoria do senador Marcos Rogério (DEM/RO), a nova lei acompanha uma série de medidas do governo federal para a flexibilização do Estatuto do Desarmamento e expansão do porte de armas iniciada em janeiro pelo Decreto 9.685 [veja aqui]. Em maio são publicados os Decretos n. 9.785/2019 [veja aqui] e 9.797/2019 [veja aqui] que já previam a ampliação da posse de armas em área rural. Em junho, outros quatro decretos [veja aqui] e um projeto de lei (PL3723) do Executivo dão continuidade às alterações do Estatuto do Desarmamento [5]. O texto da nova lei, inclusive, é idêntico a conteúdos previstos no Decreto 9.785/2019 [6] e no PL 3723 [7]. A alteração é vista por especialistas como potencial agravante da violência no campo e das dificuldades para fiscalização de armas ilegais [8]. Dois meses depois, o presidente dá continuidade a agenda armamentista e promete projeto de lei para conferir garantia absoluta aos proprietários de áreas urbanas e rurais contra invasores [veja aqui].
Leia análises sobre o histórico de decretos para flexibilização do controle de armas, a relação entre acesso a armas e violência e a influência do Legislativo na pauta armamentista.
Sob a justificativa de que o evento foi objeto de denúncia encaminhada pelo MEC, a Reitoria da UFF determina, através de ofício, que o diretor da faculdade de Direito não permita a realização do ato denominado #MoroMente. A denúncia do MEC teria classificado o ato como ‘político-partidário’ e passível de ser configurado como ‘ilícito de improbidade administrativa’ [1]. O evento, marcado pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), visa a discutir a atuação do ex-Ministro Sérgio Moro como juiz na Operação Lava Jato em face de informações divulgadas pelo The Intercept Brasil [2]. A ABJD e outros impetram Mandado de Segurança na Justiça Federal de Niterói, que defere a medida liminar para suspender os efeitos do ofício da Reitoria e reafirma o entendimento do STF em ação anterior (ADPF 548 [3]) pela ‘absoluta liberdade de manifestação e expressão no âmbito das Universidades, mesmo e inclusive para manifestar preferência ou repúdio de natureza político-ideológica ou mesmo partidária’ [4]. Tal ação foi proposta no contexto das eleições de 2018, nas quais a Justiça Eleitoral determinou a retirada de materiais ou a proibição de atos em universidades públicas considerados como propaganda eleitoral irregular [5]. Outras medidas de interferência nas universidades públicas continuam ocorrendo, dentre elas, o cancelamento de eventos [6] [veja aqui] e a alteração do processo de escolha dos dirigentes das instituições [veja aqui].
Leia as análises sobre autonomia universitária, ações repressivas em universidades em outros países – em inglês, ações da Justiça Eleitoral durante as eleições de 2018 e a ação no STF.
O Ministério da Educação (MEC) encaminha ofício para todas as secretarias estaduais e municipais de ensino do país contendo orientações sobre como manter um ambiente escolar ‘sem doutrinação’, que evite a veiculação de propaganda político-partidária [1]. O ministro da educação, Abraham Weintraub, afirma em vídeo que o comunicado tem por objetivos alcançar a cultura de paz na rede pública de ensino e coibir ‘excessos’ de professores [2]. A iniciativa do governo é batizada de ‘Escola de Todos’, e têm propostas semelhantes ao movimento Escola sem Partido [3], ao qual o ministro nega ter inspiração [4]. Esta é uma entre várias ações recentes vinculadas a justificativas de “não doutrinação”: no começo de setembro, o presidente pediu ao MEC projeto de lei para proibir a ‘ideologia de gênero’ nas escolas [veja aqui]. No âmbito estadual, os governos de São Paulo e Rio de Janeiro [veja aqui] determinaram o recolhimento de materiais educativos em razão de conteúdo relacionado à identidade de gênero e orientação sexual. Em outubro, deputados federais e estaduais do partido PSL realizam vistorias político-ideológicas em escolas públicas no Rio de Janeiro [veja aqui]. No ano seguinte, o governo de Rondônia determina o recolhimento de livros em bibliotecas escolares da rede pública por apresentarem ‘conteúdo inadequado’ [veja aqui].
Leia análise que aponta semelhanças entre a iniciativa do governo, ‘Escola de Todos’ e o movimento Escola sem Partido.
A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves encaminha denúncia ao Ministério Público de São Paulo (MP-SP) [1] por causa de reportagem da revista Azmina sobre a prática de aborto seguro de acordo com procedimentos da Organização Mundial da Saúde [2]. Segundo ela, a reportagem seria ‘apologia ao crime’ e um ‘absurdo’ [3]. A partir da denúncia, o MP abre inquérito criminal [4]. Apoiadores do governo atacam as jornalistas [5] e entidades da sociedade civil defendem a publicação com base no direito à liberdade de expressão [6] [7] [8]. A reportagem informa que o aborto é crime, salvo nas hipóteses previstas em lei [9], o que não é ilegal [10]. Em 03/2020, relato da diretora de redação da revista é ouvido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em contexto de ‘preocupação’ do órgão quanto à liberdade de expressão no país [11]. Vale notar que o episódio marca série de conflitos com veículos da imprensa e jornalistas, como aqueles com as jornalistas Constança Rezende [veja aqui], Patrícia Campos Mello [veja aqui] e Vera Magalhães [veja aqui] e com os jornalistas como um todo [veja aqui]. Ainda, o presidente Jair Bolsonaro já se manifestou em diversas ocasiões contra a prática de aborto [veja aqui].
Leia as análises sobre a legalidade da reportagem por professores de direito, a ofensiva ao aborto legal, as políticas de direitos reprodutivos no governo Bolsonaro e como se organizam os militantes contra o aborto.
Por meio de decreto [1], o presidente Jair Bolsonaro autorizou o uso das Forças Armadas, através de uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), nas ações contra delitos ambientais e combate a focos de incêndio em áreas de fronteira, terras indígenas, unidades de conservação ambiental e outras áreas da Amazônia Legal [2], após o Ibama já ter nese mesmo mês ampliado a possibilidade do uso da força em fiscalizações [veja aqui]. Um mês depois a coordenação de operações de fiscalização do Ibama envia ofício à coordenação-geral de fiscalização do órgão, diretamente ligada ao presidente da instituição, Eduardo Bim, informando que em três situações os militares envolvidos na GLO se recusaram a auxiliar os fiscais do Ibama em ações de combate ao garimpo ilegal, pois haveria a possibilidade de destruição dos maquinários apreendidos [3]. Duas dessas missões precisaram ser canceladas em virtude da falta de suporte e uma foi realizada com o apoio da Polícia Federal [4]. Segundo os servidores do Ibama, a destruição de maquinários, prevista na legislação, facilita o combate aos crimes, pois o deslocamento dos equipamentos é caro e demorado, além de expor os agentes a uma possível retaliação dos infratores [5]. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro demonstra sua insatisfação com esse procedimento legal, prometendo aos garimpeiros medidas contrárias à queima dos maquinários [veja aqui], e o Ministro do Meio Ambiente apoia madeireiros que atacaram fiscais do Ibama após ações de destruição de equipamentos [veja aqui]. Além disso, um superintendente do Ibama é demitido após afirmar em audiência pública que recebia ordens para não queimar os maquinários [veja aqui] e o diretor de Proteção Ambiental do Ibama é exonerado após ação contra garimpeiros, em que houve a queima de equipamentos [veja aqui]. Em 2020, sob uma nova GLO [veja aqui], fiscais do Ibama afirmam que a ação dos militares é ‘atabalhoada, inexperiente e até mal-intencionada’ [6] e o ministério da Defesa distorce dados sobre a destruição de maquinário [veja aqui].
Leia mais sobre como a destruição de maquinários usados em crimes ambientais diminuiu durante a gestão Bolsonaro e ouça a análise sobre os problemas da aplicação da GLO na Amazônia.
O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e responsável por investigar violações de direitos humanos em unidades públicas, como penitenciárias, divulga nota pública com o resultado das inspeções feitas em presídios do Pará [1] e, no mês seguinte, o relatório [2] elaborado sobre a atuação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) no estado e as condições vivenciadas nos presídios [3]. A inspeção nas unidades prisionais do estado é motivada pelo ‘massacre de Altamira’, que resultou na morte de 62 presos e ocasionou a intervenção federal [4], sem que o presidente demonstrasse preocupação com as vítimas [veja aqui]. Em 23/09, o MNPCT oficiou o Ministério Público Federal (MPF) sobre o resultado da inspeção e solicitou providências em caráter de urgência [5]. O documento aponta para ilegalidades na atuação de agentes de segurança, com um ‘quadro caótico de superlotação’, bem como para a prática de maus-tratos e tortura a presas e presos [6]. Dentre as violações, estão deixar os presos incomunicáveis e aplicar sistematicamente sanções coletivas [7]. Em outubro, o MPF elabora um relatório denunciando as violações aos direitos humanos em presídios do Pará [8], que Bolsonaro chama de ‘besteira’ [veja aqui]. Logo depois, a Justiça Federal afasta o comandante da FTIP que atuou no Pará [9]. Em resposta, o diretor geral do Departamento Penitenciário Nacional classifica as denúncias como alegações sem provas e afirma que os presos se automutilam para retirar a força-tarefa do estado [10]. Vale notar que, em junho, Bolsonaro exonerou peritos do MNPCT [veja aqui] e, em dezembro, o Ministro da Justiça assina portaria que ignora recomendações formuladas pelo Mecanismo [veja aqui].
Leia as análises sobre as denúncias de tortura em presídios sob intervenção federal e o seu modelo brutal de gestão dos presos.
Câmara Legislativa do Distrito Federal aprova lei contra disseminação de ‘fake news’ [1]. Projetos semelhantes foram aprovados no ano seguinte no Acre [veja aqui], Paraíba [veja aqui], Ceará [veja aqui] e Roraima [veja aqui], porém estes se relacionavam diretamente com o contexto da pandemia gerada pelo coronavírus. Neste caso, a lei estabelece, de modo genérico, multa entre R$ 1.000 a R$ 15.000 para quem divulgar ou participar da produção de notícias ou fatos inverídicos [2]. A lei também pretende punir aquele que ‘compartilha em aplicativos de mensagens, redes sociais ou sítios na rede mundial de computadores notícias que sabe ou deveria saber falsas’ [3]. A lei também busca atingir os provedores de serviços ou proprietários de sites, afirmando que estes são responsáveis pelas notícias e fatos ali divulgados, podendo também serem multados e ter suspenso seu alvará de funcionamento ou licença para exercício de sua atividade [4]. É previsto, também, uma regulamentação pelo poder Executivo de qual será o órgão administrativo competente para recebimento de denúncias e aplicação das sanções previstas na lei [5]. A autora do projeto justifica o mesmo pois, segundo ela, a internet ‘trouxe uma série de notícias falsas e propagandas enganosas, colaborando com a prática de ódio e com o bullying’ [6]. A aprovação de leis desse tipo tem sido criticada por especialistas, pois estas não estabelecem o que são ‘notícias falsas’ e não consideram o fato de que grande parte das informações falsamente divulgadas são feitas por pessoas sem a consciência de sua falsidade [7]. Além disso, eles apontam que essas leis podem restringir a liberdade de expressão e imprensa no país [8]. Entre o começo de março e o começo de junho de 2020, 26 projetos de leis foram lançados para combater notícias falsas na pandemia [veja aqui] e ao menos 21 dos 26 estados brasileiros apresentaram iniciativas nesse sentido .
Leia análise sobre o surgimento de projetos que pretendem alterar a estrutura de regulação da liberdade de expressão na internet.